A Terra é um membro gangrenoso do Universo, a humanidade são as bactérias que a levam à putrefacção. Eu, não passo do que alguns chamam de cancro entre os Homens, esses que não têm clareza mental para perceber que sou a cura. Por isso, aos poucos, elimino esta infecção. Já me perguntaram porque não começo por mim, mas quem levaria a cabo a expurgação deste planeta purulento? De cada vez que exponho o problema, não encontro compreensão e a teoria do cancro cai por terra. O cancro multiplica-se, no entanto, eu continuo sem conseguir propagar-me, ao invés, todos os que vi como esperança depressa se mostraram incapazes e sofreram as consequências. Quem sou eu? Trabalho atrás de um qualquer balcão de atendimento ao público, sempre com um sorriso, porque sei que poderás ser o próximo.
Chegarias tu aqui, fosse o acaso entregar-te essa informação? A tua carne aguarda ansiosamente pela chama da vingança, mais correctamente pela fagulha que a inicie. Todos os elementos estão presentes, combustível e comburente, em abundância. O domínio da situação já há muito te escapou. Continua apenas a sua ilusão. A morte trespassa-te constantemente, transportando-te em viagens pelos confins do teu arquétipo. O esquecimento é constante no consciente, no entanto, aos poucos, a tua essência é tatuada com o caminho a seguir. O comum das pessoas em nada pode alterar o seu destino, falta-lhes o acesso ao seu âmago, tu tem-lo. Há uma única falha: controle.
Homens sem carne soerguem-se sobre a planície, observam sem ver o Ser que lhes bloqueia o caminho. - Fica e serás mais do que Eu. Mas insistem em caminhar. Sem qualquer hesitação os passos sucedem-se. Bebem ejaculações vitais e esvaem-se em êxtases de sangue. Fica, só por um momento. Só hoje, bebe o que é meu.
Acordei sentindo o corpo entorpecido. Arrastei-me até ao espelho: a pele pálida e ressequida. Ao passar com os dedos pela face, a carne desfez-se qual pó lunar. A cada fechar e abrir de pálpebras, caíam pestanas. Revirei os olhos, queria olhar o interior. Tinha morrido. Ignorei o facto e saí para trabalhar. Os movimentos não eram meus, nem precisavam de o ser, os membros aprenderam-nos e repetiam-nos sem qualquer dúvida. Era fácil. Bastava não contrariar a matéria e tudo seria perfeito. A massa argilosa recebeu-me de braços abertos, permitindo-me a entrada no seu sexo, no interior do qual repousei. Só resta perguntar: Amava eu a perfeição?
Jorram sem fim, da sua garganta purulenta, sons amargos que anunciam o fim. Correm viscosamente pela calçada desgastando o tempo hesitante. A mentira reina a seu lado, sem que vez alguma lhe seja cedida a vontade de entender. Permite-se assim a decadência da matéria, esquecendo para sempre o único Culpado.
Era já há muito o melhor marcador da sua equipa, mas vivia cada golo como se fosse único. Os seus colegas rodearam-no aos pulos e encontrões, dando-lhe amigáveis tapas nas costas e cabeça. O resultado virara a seu favor.
O jogo prosseguiu. Quando Nélio voltou a ter o esférico nos pés, viu uma nova oportunidade de concretizar. Avançou para a baliza. Fintou um, dois, três, jogadores da equipa adversária – sentia-se imparável. Subitamente, sem que se apercebesse, uma espécie de perna surge à sua frente, não lhe dando espaço para qualquer reacção. A bola e Nélio embrulharam-se com a perna desconhecida, de tal modo, que quando se quedaram, ninguém sabia o que era quem e quem era o quê. A testa doía-lhe sem fim. A sua visão afunilou-se e, à medida que perdia a consciência, tudo o que conseguia visualizar era céu e serra; o céu, a serra e a Lua, às cinco da tarde de um solarengo dia de Verão.
Quando acordou, encontrava-se na cama do hospital com a perna engessada e um enorme galo na testa. No entanto, nenhum desses achaques o parecia incomodar. Só um problema lhe causava insónias: como é que a Lua podia andar por ali quando ainda havia sol?
No dia em que regressou à escola, foi direito à biblioteca, apesar de um coro de protestos dos colegas que já tinham saudades dele, e o queriam para si. Porém, aquele problema não se esfumara, pelo contrário, simplesmente não conseguia pensar noutra coisa.
Leu e leu e leu… Aprendeu o que eram as fases da Lua, e percebeu que nada impedia a Lua de aparecer durante o dia. Mas a sua curiosidade não se ficou por aí. Esteve vários meses sem poder jogar, por isso, o seu tempo era ocupado com estrelas, galáxias, nebulosas, quasares e mais uma miríade de conceitos estranhos para os seus amigos.
Finalmente, tinha chegado a hora em que, após uma longa recuperação, podia jogar novamente. A adrenalina corria-lhe nas veias. Passaram-lhe a bola e Nélio avançou pelo campo. Contudo, ao observar o jogo à sua frente, algo estava diferente. No lugar de jogadores adversários, via buracos negros que deveria evitar. Contornou aqueles enormes buracos de gravidade com a mestria de um experiente raio de luz. Quando se aproximava da baliza uma cintura de asteróides impôs-se entre ele e o destino do cometa que guiava nos seus pés. Despedindo-se dele, rematou de trivela. O cometa subiu deslizando pelo vazio do espaço, com uma esplendorosa cauda criada pelos ventos solares. Pairou e rapidamente desceu directamente para o fundo da baliza, sem que nada o pudesse importunar – o astro chegara ao seu destino.
Foi a estrela do jogo. Tudo lhe correu na perfeição. No caminho para casa, o seu pai, que vira o jogo, afirmou em jeito de elogio:
- Quando fores grande, vais ser jogador de futebol!
- Jogador de futebol, eu!? - Retorquiu Nélio, mostrando-se espantado. - Eu quero é ser astronauta!
As minhas vísceras sussurram o teu nome. Cai, deixa-te ir pelo negrume da noite. Esquece-te de quem és. Vês os abutres que se aproximam? Também tu partirás só. Engole o putrefacto esperma de uma eternidade sem luz e diz que me amas.