- Gostaria de o apresentar a si próprio
- Estou a ouvir.
O Dr. pega numa pasta com o nome “Victor Ramos” escrito na capa. Olha para o homem que se encontra sentado à sua frente. Este está vestido apenas com uma bata e chinelos. De um modo falso o Dr.
sorri, e de seguida ajeita os óculos que lhe descem pelo nariz.
- Chama-se Victor Ramos. Tem 38 anos. Nasceu a 19 de Janeiro de 1970 em Lisboa. Não se recorda mesmo de nenhum destes factos, pois não?
- Nada.
- Interessante, interessante.
O relato de factos da vida de um estranho continua, enquanto o homem aparentemente se mantém indiferente a eles. Tudo banal no seu ponto de vista, por isso deixa de ouvir. O médico apercebe-se de que está a ser ignorado, ainda assim continua a despejar informação como se não soubesse disso.
O paciente está sentado e a sua mente em branco. Esforça-se por se recordar de algo que anterior à sua chegada a este sítio, antes das batas brancas, mas nada surge.
- Pode explicar-me porque estou aqui? – Pergunta, interrompendo o ruído contínuo da voz do Dr. Fix, que o estava a incomodar.
- Diga?
- Porque estou aqui?
O Dr. Pousa os papéis na mesa, tira os óculos, mas continua a segurá-los.
- Lembra-se de alguma coisa, seja o que for, antes do seu internamento?
- Nada! – Responde de modo irritado.
Fix pega mais uma vez na pasta e avança várias páginas. Procura algo específico.
- Aqui está – faz uma pausa, enquanto passa os olhos pela informação que procurava e prossegue – Passo a ler: “No dia 20 de Outubro pelas 21 horas, Victor Ramos foi visto a entrar na sua casa empunhando um revólver. Pouco depois, ouviram-se três tiros quase seguidos. A Polícia foi chamada ao local e encontraram Helena Ramos, já falecida, e Victor Ramos ao seu lado, ainda com a arma que disparou os tiros na mão. Entre a entrada do sujeito referido na casa e a chegada da polícia, mais ninguém entrou ou saiu.” - O Dr. Fix levanta a cabeça e olha para o homem. - Toda esta situação levou-o a entrar em choque e desde aí, aparentemente, ficou com uma amnésia quase total.
Fix fica à espera de uma qualquer reacção. O homem está confuso, põe os olhos no chão. Lembra-se de uma morte, da sensação de perda, do sangue na parede... começa a chorar compulsivamente.
- Sr. Ramos, talvez seja melhor ficarmos por aqui. Continuamos amanhã, mas vá descansado porque estamos a fazer progressos.
Volta a sorrir friamente enquanto faz sinal a um segurança que se encontra num canto da sala. Este aproxima-se de Victor, pega-lhe no braço e acompanha-o para fora dali. Depois de deixarem a sala o Dr. Fix aguarda uns momentos, desfolhando mais uma vez o relatório que tão bem conhece, e sai também.
Passa por vários corredores mal iluminados, numas instalações quase desertas, e por fim entra numa porta sem qualquer inscrição, num recanto esquecido do edifício. Lá dentro há inúmeros ecrãs. Em alguns deles vê-se Victor de vários ângulos, sentado na cama da sua cela. Numa cadeira a observar todas essas imagens, encontra-se uma mulher na casa dos cinquenta, vestida casualmente com uma expressão de um tremendo tédio.
- O sujeito 47 acabou de entrar – diz ela num tom monocórdico.
- Alguma novidade em relação aos outros sujeitos?
- Não.
- Fique atenta. Vou descansar um pouco – avisa o Dr. enquanto passa a vista pelas imagens que decorrem nos ecrãs. – Como habitual, se houver algum acontecimento merecedor da minha atenção, contacte-me – ao mesmo tempo que dá esta última ordem, abre a porta e sai sem nunca olhar para a mulher.
No dia seguinte é acordado pelo som do telefone a tocar. Do outro lado da linha debitam de imediato informação, ninguém está interessado em conversa de ocasião.
- Após uma noite sem pregar olho, o sujeito 47 suicidou-se, espetando o cabo de uma colher que acompanhava o seu pequeno-almoço, pelo olho adentro. Não foi possível salvá-lo.
“Bando de incompetentes!” pensa Fix, “Menos uma cobaia...”
- Mais alguma coisa? – Pergunta o Dr.
- Deixou um bilhete escrito onde se declarava culpado pelo assassínio de uma Helena.
- É tudo?
- Sim.
- Envie-me de imediato esse bilhete – dito isto, desliga o telefone.
Levanta-se e vai até à sua secretária onde tem uma máquina de escrever. Quer de imediato acrescentar alguns dados e conclusões ao relatório do sujeito. Coloca uma folha em branco na máquina, faz cuidadosamente um cabeçalho e passa à escrita do corpo.
“Foi possível uma manipulação do sentimento de culpa, que o sujeito possuía relativamente ao facto de ter deixado a sua esposa. A amnésia provocada, seguida de vários dias de sono induzido com exposição do sujeito, a sons e imagens de um assassínio fictício, levou a que aquando do relato forjado da suposta morte da sua esposa, o sujeito de imediato assumiu-o como real.
“Por explicar fica a morte violenta a que se sujeitou, visto não lhe serem conhecidos quaisquer antecedentes de violência. Uma hipótese será, que tal atitude poderá ter sido resultado por uma exposição excessiva às imagens do assassínio. No entanto, tal não comprovado, visto a cobaia ter sido perdida.”
Dr. Fix retira o papel da máquina e junta-a ao relatório do Sujeito 47.
Se estas experiências viessem a público, poderia haver quem as achasse desumanas e poderiam mesmo pensar que estas apenas levam a aprendizagens sem qualquer tipo de interesse, mas para o Dr. Fix toda a dor é justificável, todo o conhecimento é relevante.