Memórias do Nunca - Parte 10
Olho-me, mas perco-me, não sei quem me olha do outro lado, não me reconheço. As transformações foram excessivas. Quem está aí? Quem me olha? Porquê esse olhar intenso? Que me queres... deixa-me ficar neste estado de apatia, deixa-me olhar as mágoas do passado como quem recorda alegrias. Sou pouco mais que aquilo que tu esqueceste e procuro o que tu não encontras. Por isso me sinto perdido e continuo a olhar para o outro lado do espelho que não entendo. Quem és? A dúvida persiste. Só queria conseguir perceber o que se passa aí dentro. Esquece-me para que eu me esqueça. Não suporto o teu olhar. Hoje estás alegre... amanhã triste, mas quando estás como eu? O espelho não engana... mas quem está lá? Hoje não sou eu. Hoje alguém se esqueceu de mim sete palmos abaixo da terra. Merda para ti! Não te suporto mais. Olha o céu como se fosse este o teu último dia de liberdade e faz o que esse do outro lado do espelho tanto deseja. Olvida-te de mim. E afinal quem é real? Aquele que faz ou o que manda? Afinal o que é real? Este ou o outro lado do espelho? Não quero mais saber o que se passa do outro lado. Mas ele persegue-me por onde anda. Ele olha-me como quem não quer viver. A cada esquina ele volta a surgir como que numa renovada angústia perpetrada pelo legado do homem que finjo não existir. Odeio-te! Porque me queres controlar. Tu és eu, mas quem somos nós? Ambos fingimos que o outro não existe. Olho-me fazendo de conta que não estou lá. Odeio-te! Finjo estar como quem não tem a noção da sua existência, no entanto para sempre estás a viver aquilo que não sou.
1 Comments:
"Ensaio uma linguagem
que somente os espelhos poderão
apreender: pois que a eles é dado repetir
multiplicar os que falando os assediam.
A eles me rendo com toda a leveza
com que, multiplicado, me incorporo
ao milagre de aceitar-me sério ou rindo,
sem mais sentir-me o outro
no interior - o outro - o que admiro:
belo e fugaz - o outro -
senhor tão pouco de sua presença
pelo que se ausenta atrás da própria face
- sem atribulações.
Aos espelhos me rendo neste ensaio.
No mais quem dirá que serei leve
para me incorporar às coisas definidas,
para me repetir nos meus desejos,
dissociar-me, integrar-me como alento
intangível além da superfície
dos espelhos?
A coisa em si
o tempo
a duração
existe onde?
Em nós ou além do círculo
que nos circunda?
Seremos como o Deus
que estando em todos
é íntegro e disperso
é móvel e é imóvel
uno e divisível?
A coisa em si
o tempo
a sucessão
do ser para o não ser
da vida para a morte
da morte para o enigma
da reencarnação:
Eis o círculo -
e dentro o enorme enigma
a um tempo breve e eterno.
A linguagem que ensaio comunica
o sopro alentador.
Os límpidos cristais se livrarão
de sua beleza silenciosa e fria.
Tocados da linguagem cantarão
dissolvidos e vivos, livres
como águas azuis acomodadas
em seu curso de plena liberdade."
F. Castro Chamma
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